domingo, dezembro 24, 2006

O Pai Natal no Intendente (Conto de Natal)

É um segredo que vos vou contar. Há cerca de 10 anos um estranho acontecimento ocorreu durante a noite de Natal lisboeta. Mas mais estranho do que o evento foi a sequela, um dramático engano que a partir dessa data tornou cada noite de Natal mais difícil para o seu protagonista, o Pai Natal. Eis o que se passou.
Na noite de 24 para 25, o Pai Natal percorria as ruas de Lisboa na sua labuta anual de distribuição de prendas. Tudo corria bem, como seria de esperar de um evento minuciosamente planeado ao longo de todo um ano. É claro que havia sempre alguns contratempos, mas estes não comprometiam o sucesso da operação. Desta vez a noite estava muito fria e, como todos os anos, o trenó puxado pelas renas não se dava muito bem na calçada lisboeta, saltando e deslizando lateralmente, sofrendo por isso algumas amolgadelas nas esquinas das ruas estreitas. Antigamente era pior; todos os presentes tinham de ser trazidos da Lapónia, o que implicava um interminável comboio de trenós, puxado para mais de três dezenas de renas, que fazia o Pai Natal praguejar toda a noite enquanto serpenteava as ruas estreitas da parte mais antiga da cidade. Mas hoje em dia tudo era mais fácil, os avanços tecnológicos permitiam que o comboio natalício tivesse apenas um par de renas e um único trenó de pequena dimensão, guiado pelo personagem de vestes vermelhas e barba branca. Este transportava uma longa lista de ruas, números de porta, andar, e prendas respectivas. Sempre que o documento era lido, as prendas materializavam-se in loco.
Por volta da meia-noite, o Pai Natal estava a acabar a distribuição de prendas do que designava “o eixo da Almirante Reis”. Vindo do lado do Campo Santana, desceu pela Rua do Conde Pombeiro até à Rua dos Anjos. No meio das entregas nos prédios de um lado e outro da rua, um arrumador de carros tentou convencê-lo a estacionar o trenó num lugar disponível. “Olha o Pai Natal!... Não me queres dar uma prenda ?”. “Meu caro amigo”, sorriu o Pai Natal com ternura depois de verificar a sua lista, “tenho aqui um pedido teu de prenda de Natal, mas como podes imaginar, o meu superior não me autoriza a oferecer-te uma caixa de seringas com recheio”. Debaixo de protestos e um chorrilho de palavrões, o Pai Natal atravessou a Almirante Reis e seguiu na direcção do Intendente. Aquele largo era sempre um local triste para ele. Ali muita gente pedia prendas que ele não podia dar, ou, pior do que isso, nem sequer pedia prendas. À entrada do largo dormia um bêbado caído no chão. O Pai Natal verificou a sua lista. Não constava…”Em frente! “ tentou animar-se esfregando as mãos frias e fazendo uma festa nas renas, “Estamos atrasados”. Parou o trenó em frente do número 13 do largo e verificou novamente a lista. “Nada para o 1º andar, uma escada de corda e uma bola saltitona para o 3º… e para o 2º andar… o que é isto?! “. Na coluna das prendas desejadas podia ler-se “Pai Natal”. Teria sido um erro dos serviços centrais? Era raro, mas por vezes aconteciam. ”Bom, já se vê”. A porta do prédio estava entreaberta. Já com a escada de corda e a bola debaixo do braço, numa tentativa de acelerar o ritmo das entregas, entrou. Era um edifício muito velho e sem luz nas escadas, o que o fez ter de agarrar-se ao corrimão e subir com cautela. Passou o 1º andar na escuridão total, mas pelas frinchas da porta do 2º andar saía luz que emprestava uma claridade pálida à envolvência. Bateu duas vezes. Uma mulher abriu. Aparentava 40 anos mas podia ser mais velha, já que as rugas estavam semi-ocultas debaixo de creme e pó de arroz, e os olhos muito pintados. Vestia mini-saia, saltos altos e um top justo que lhe salientava os seios. O Pai Natal não tinha nascido ontem e logo percebeu de quem se tratava. “Entre” disse ela sorrindo e mostrando os dentes estragados. Entrou atrás dela. Era um quarto. Ao centro uma cama grande de ferro, antiga. Do lado direito um improviso de cozinha, com um armário com tachos, pratos e talheres, e um pequeno fogão eléctrico sobre o soalho. Do outro lado um aquecedor ao pé de uma janela mantinha o compartimento com uma temperatura agradável, mas cheirava a mofo. Ao fundo uma porta, possivelmente uma casa de banho. O chão, feito de tábuas de madeira velha, gemia quando nele se caminhava. O Pai Natal disse: “Peço-lhe desculpa, mas deve ter havido um problema nos meus ficheiros, por isso receio não lhe ter trazido a prenda que desejava…” Explicou que se tinha dado conta do erro mesmo antes de subir as escadas, e que de vez em quando aconteciam estes problemas. A mulher retorquiu exaltada, como se fizesse um discurso: “Pois o que está escrito no seu papel é mesmo o que eu quero! Como sabe, ando nesta vida de puta desde os meus 15 anos, já fui com muito homem para a cama, não há nada que eu não tenha já visto ou feito.” Obviamente assumia que o Pai Natal sabia tudo sobre a vida dela, o que não era verdade, o Pai Natal é um mero executante para uma noite especial, os seus superiores é que sabem destas coisas da vida das pessoas e lhes traçam o destino. “Desde pequena que me dizem que o Pai Natal é muito bonzinho e que faz a vontade a todas as pessoas de bem. Bom, saberá nunca enganei nem roubei ninguém, a mim é que me roubaram muitas vezes, quantos clientes se foram embora sem pagar, ou me deram uma carga de porrada como paga!..”. Ofegante, continuou: “Depois destes anos todos, acho que mereço eu uma prenda! Dei prazer a muitos homens, agora quero eu ter prazer com alguém especial. Desejo isto há muito tempo mas nunca o tinha pedido: quero fornicar com o Pai Natal!”. Desta forma franca terminou a mulher o seu monólogo, e compreendeu o Pai Natal a referência ao seu próprio nome na lista. Seguiu-se um momento de silêncio tenso, cada um a remoinhar a sua estratégia, após o qual o Pai Natal pigarreou, embaraçado, e disse: “Minha filha, isso não é possível…”. “Porquê? É algum pecado? Estou a pedir alguma coisa que prejudique alguém?”. “Mas repara…, o Pai Natal não pode meter-se nesses assuntos tão… mundanos…”. “Porquê, não me diga que não é como os outros homens? Não entesa quando vê uma gaja boa?”. O Pai Natal emudeceu. De facto tinha acontecido uma vez, mas com resultados terríveis. Foi numa manhã do mês de Maio de há muitos anos atrás. Ele era mais novo, tinha acabado de ser promovido ao cargo de Pai Natal. Tinha vindo à Península Ibérica fazer uns reconhecimentos de terreno para preparar a distribuição de prendas no Natal seguinte. Na região de Fátima encontrou uma sueca que passeava pelos campos, calção curto e pernas de quem não passava fome. Sem ele ter tempo de dizer olá, ela saltou para cima dele, todos sabem como são as suecas. O Pai Natal era santo mas não era de ferro. Fizeram amor ali mesmo, debaixo das azinheiras. No fim, a sueca, meio louca, estava radiante com este português que tinha encontrado. Subiu ao cimo de uma azinheira e, nua e com ar radioso, exclamou num português macarrónico “É preciso rezar muito para nos sair um gajo assim!”. O problema é que passavam por ali 3 pastorinhos que a viram, muito branca e esplendorosa, e a partir daí foi o que se sabe, uma bola de neve que dura até aos dias de hoje. Desde então tinha sido proibido pelos seus superiores de pensar sequer no tema carnal, era um dos seus pontos fracos. “Não, fora de questão! Lamento mas esse presente não lhe posso dar. Tenho de prosseguir na distribuição de prendas, ainda tenho mais de meia cidade por fazer. Boa noite!”. E dito isto, dirigiu-se para a porta. “Era o que eu temia” retorquiu a mulher com ar ameaçador. “Meninas! Preciso de ajuda!” gritou. Num repente, da porta ao canto do quarto saíram quatro mulheres com semblante carregado e ar decidido. “Filho da puta hás-de fazer a vontade à nossa Luciana nem que seja a última coisa que fazes!” vociferou uma delas enquanto se lançavam em simultâneo para cima do pobre homem. A bola saltitona e a escada de corda saltaram das mãos do Pai Natal enquanto este era empurrado violentamente e atirado para a cama. Num ápice viu-se deitado a olhar para o tecto enegrecido e sentiu cordas a apertarem-se-lhe à volta das mãos e pés. Duas mulheres agarravam-no pelas mãos, a terceira, sentada em cima da sua barriga, segurava-lhe os pés e a quarta estava de joelhos no chão a ajudá-la. As molas do colchão protestavam com o peso desta mole humana, enquanto a bola saltitona pulava de excitação ricocheteando entre o chão e as paredes. Assim foi o Pai Natal agarrado aos ferros da cama, braços e pernas esticados sobre o colchão. ”Já está!”, bateu palmas uma das mulheres após darem por concluído o trabalho. “E que tal Luciana, queres brincar com o Pai Natal?!”. “Obrigado meninas, podem voltar ao primeiro andar que eu agora trato dele sozinha!” exclamou Luciana com ar sério.
Assim que as outras mulheres saíram, Luciana despiu-se. Em seguida fez o mesmo ao Pai Natal, que ainda se debatia tentando libertar-se do seu cárcere. Lançou-se para cima dele e começou a beijá-lo, acariciá-lo, roçar-se nele, fazer-se apalpar. No meio dos protestos, dos gritos desesperados tentando chamar a mulher à realidade, à importância tremenda daquela noite, à quantidade de lares que aguardavam as prendas que lhes deveria entregar, o Pai Natal começou sentir os efeitos das carícias e beijos. Os detalhes não podem ser descritos, isto sempre é um conto de Natal, mas a verdade é que o corpo e a mente do Pai Natal travaram uma luta desigual que foi ganha pelo primeiro. Tal como em Fátima… A meio da noite Luciana, satisfeita com o seu presente, adormeceu parcialmente enroscada sobre o Pai Natal e com a cabeça apoiada sobre o seu braço esquerdo. O Pai Natal sentia-se humilhado, tinha baqueado outra vez, e incomodava-o aquela sensação de corpo saciado. No meio do silêncio ouvia-se o tiquetaque do relógio na mesa-de-cabeceira do lado de Luciana. Lá fora as renas chamavam pelo seu dono, sem saber o que tinha acontecido mas com a noção de que estavam atrasados, muito atrasados. O Pai Natal levantou a cabeça e espreitou. Eram 2h da manhã.
O Pai Natal reparou que conseguia mexer uma das mãos, os nós tinham ficado mais lassos em consequência da agitação da noite. Conseguiu soltar uma mão, depois outra. Muito lentamente tirou o braço debaixo da cabeça de Luciana e levantou o tronco para libertar os pés. A cama alertou a dona com um gemido de molas mas esta não acordou, gemidos eram uma parte integrante da sua vida. Livre do seu calabouço, o Pai Natal caminhou lentamente para a porta. “Raios, está trancada”. Olhou em volta em procura da chave, não a viu. Passou-lhe pela ideia atacar Luciana e obrigá-la a dar-lhe a chave mas pensou nas companheiras do andar de baixo que rapidamente se aperceberiam da tentativa. Era demasiado arriscado. Ao reparar na escada de corda num canto do quarto, olhou para a janela. “É só um segundo andar, talvez consiga”. Abriu a janela, sorrateiro, espreitou, e prendeu a escada ao parapeito. Ao vê-lo à janela, as renas agitaram-se lá em baixo mas ele, com um sinal imperativo, fê-las calar. Passou por cima das grades e começou a descer os degraus de forma insegura e desastrada, muito tempo tinha passado desde que fizera pela última vez estas avarias, quando ainda descia chaminés. A determinada altura, prendeu-se o seu cinto nos ferros do gradeamento da janela do primeiro andar “Raios! É mesmo onde devem estar as outras mulheres”, que mais lhe iria acontecer esta aventura nunca mais acaba. Nesse momento, cá em baixo, passava Adónis. Trabalhador brasileiro, dirigia-se para casa depois de umas caipirinhas natalícias em casa de uns amigos. Ao ver o Pai Natal em luta com as escadas sorriu com ternura. “Olha!.. Um cara vestido de Papai Noel a subir umas escadas. Há cada maluco!... Mas olha que é bacana…E se meu patrão mandasse fazer, lá na China, uns bonecos Pai Natal a subir escadas, para pendurar nas janelas? Era capaz de vender bem…”
Nessa noite de Natal, a parte norte da cidade de Lisboa não recebeu presentes. O assunto ficou abafado, ninguém confessou que não tinha tido presentes de Natal! Na madrugada do dia 25, houve quem visse o Pai Natal, extenuado, no seu trenó puxado pelas renas, a sulcar os céus de regresso à Lapónia, enquanto pensava nas explicações que teria de dar aos seus superiores para o facto de não ter cumprido a sua missão na íntegra.
Todos adivinham o fim desta história. O Pai Natal continua a vir a Lisboa. Porque sem ele, não haveria noite de Natal. Mas durante toda a sua noite de trabalho, vê permanentemente as recordações deste episódio dramático e humilhante, em janelas e mais janelas de muitas ruas, todas com os seus bonecos Pais Natais a subir escadas, símbolos de um voto de boas vindas a cada um desses lares. Equívocos que irritam o Pai Natal. “Já não bastava o episódio de Fátima, irra!..”.


Lisboa, 23 Dezembro 2006
Francisco Além-Tejo

sábado, dezembro 02, 2006

O último a ver (conto)

O vento soprava forte nas árvores à minha frente. Elas pareciam debater-se desesperadamente a tentar entrar quarto adentro, cobiçosas da minha cama com ar quente e convidativo que se exibia através da porta entreaberta para a noite. Havia poucos minutos os meus olhos tinham passeado pela primeira vez no céu austral e sentido a estranheza desta visão. Era como se um gigante tivesse recolhido, delicada e pacientemente, uma a uma até perfazer triliões, as Ursas, o Orion, as Pleíades, o Touro, tudo o resto que eu conhecia e o que nunca viria a conhecer, amarfanhado todos aqueles pontos brilhantes numa mão e voltado a lançar com brutidão para o velcro preto da noite. Só os lumezinhos flamejantes dos aviões lá no alto me pareciam iguais aos do outro lado do planeta. Fazia frio, um frio cortante a lembrar-me que estava 2000 metros acima do nível do mar. Inspirei fundo lavando os pulmões com aquele ar, que só podia ser do mais puro que alguma vez tinha saboreado, e entrei no quarto. Lavei os dentes (sorri ao olhar para o lavatório, sempre era verdade que a água rodava ao contrário quando deslizava ralo abaixo, no Hemisfério Sul). Vesti o pijama, acertei o despertador e deslizei para o conforto dos lençóis.
Senti o coração apertado e respirei fundo a tentar acalmar-me. Uma excitação, simultaneamente de criança e de explorador num lugar novo e distante (e o que é uma criança senão um explorador sem autorização para o ser?) invadia o meu imaginário e não me deixava dormir. África... Estava em África... Mas não era na áfrica da televisão, a dos leões, zebras e elefantes, não!.. Esta era uma África desconhecida só existente no extremo Sul do continente, e que nem sequer fazia parte do imaginário dos Europeus: uma longa cadeia de montanhas com grandiosas pradarias naturais que existiam há vários milhões de anos, e onde viviam animais e plantas únicos no planeta. Isso tornava-a ainda mais especial. Eu estava no meio dessas montanhas, na província com o nome mágico de Mpumalanga, que significa “onde nasce o Sol”. Dois sonhos de criança concretizavam-se ali: Tinha-me tornado biólogo. Estava a trabalhar em África. Tão simples e completo quanto isso. E nos dois meses que se seguiam ia estudar uma espécie desconhecida que só existia nesta região montanhosa, uma ave chamada abetarda-azul.

As imagens do dia relampejaram-me no pensamento, ainda mal digeridas. O voo nocturno desde Londres. A aterragem inesperada em Moçambique (porque pensava que o voo era directo para Joanesburgo). A passagem por cima do Parque Nacional de Kruger, onde se encontrava parte da África do meu imaginário. A chegada a Joanesburgo, pela manhã. A menina simpática da empresa do aluguer de viaturas. A tensão enorme ao sair sozinho da grande metrópole a conduzir pelo lado esquerdo da estrada (exemplo paradigmático de como a raça humana é complicada; nem numa questão tão simples como esta se chegou a acordo!). A troca sistemática do pisca-pisca pelo limpa-pára-brisas, que me dava o ar ridículo de querer limpar o vidro sempre que mudava de direcção, uma espécie de complexo de Pilatos automobilístico. O quase-acidente com um enorme camião. O receio de sair do carro para despejar a bexiga encostado a uma árvore, como fazia em Portugal, porque estava num país onde tudo me era estranho e todos me pareciam potenciais criminosos (não era sempre por isso que a África do Sul aparecia nas notícias?).
O stress não me deixou ver as paisagens que atravessei até chegar ao destino. Depois de três horas de viagem, ao início da tarde, Wakkerstroom, pequena povoação encaixada no planalto, local de peregrinação de muitos amantes de aves de todo o mundo. A recepção pelo André, Director do Centro do BirdLife, tipo calado e com ar de poucos amigos. O meu primeiro contacto com David, o Zulu que falava mal inglês, mas que conhecia como ninguém a região e as aves. Era um tipo de vinte e poucos anos, ar vivo e inteligente. Claramente, agradava-lhe a tarefa de me ir acompanhar durante o início do meu estudo científico. Gostava de se designar “research assistant” e estava entusiasmado pela minha chegada, farto de passar os dias a guiar turistas “birdwatchers” e mostrar-lhes as aves estranhas das montanhas, como o pica-pau que fazia ninho num buraco do chão (única alternativa numa paisagem sem árvores), ou a cotovia de Botha, que em todo o planeta só existia nalgumas colinas daquela região. Falámos de futebol, essa linguagem universal desbloqueadora da distância entre povos. Figo e um jogador sul-africano que jogava no Porto fizeram as delícias de David, apesar de baralhar muito os jogadores espanhóis e os portugueses. Falámos da abetarda-azul, é claro, e fiquei entusiasmado ao saber que poderíamos tentar ver algumas ainda naquela tarde, ou pelo menos ouvir os seus chamamentos característicos.
Despejei as malas no quarto, passagem rápida pela casa de banho (finalmente!), entrámos os dois no carro e fomos montanha fora. Foi também, agora mais sereno, o meu primeiro contacto com a paisagem. Um vasto planalto amarelado, salpicado de ovelhas e vacas aqui e acolá, alguns picos mais elevados ao longe. Vedações de arame farpado delimitavam o caminho de terra e as diferentes parcelas de terreno. Tudo tinha um ar pastoril, quase familiarmente europeu, e só os pastores negros pareciam personagens fora do contexto. Soprava um vento muito forte e a atmosfera estava cheia de uma névoa poeirenta. David explicou-me sumariamente (que o inglês dele não dava para mais) que estávamos no fim do Inverno, época em que a chuva se recusa a cair na montanha. A partir do momento em que começassem as primeiras chuvas, o amarelo daria rapidamente lugar ao verde. Como se o azul do céu se liquefizesse e se unisse ao amarelo da terra, para a alteração cromática. Os aguaceiros e trovoadas (e de que fantásticas trovoadas eu viria a ser espectador...) já deviam ter chegado há três semanas mas tinham-se atrasado, sem saberem que a terra, os bichos e os homens, ansiavam por elas. O dia estava a chegar ao fim. Ainda tivemos tempo para ouvir as minhas primeiras abetardas-azuis, um chamamento rouco e estranho que estas aves emitem com o pescoço esticado e bicos virados para o céu, muito juntas em dueto a quinteto, como meninos de coro em dia de missa. Vi duas a voar muito ao longe, fugidias, no meio da névoa poeirenta. Não me importei por não as ver melhor. Sabia que a natureza nunca se oferece ao viajante quando ele acaba de chegar, tem de se pagar com tempo o direito a entrar nela, e eu tinha, nesse aspecto, um grande crédito. Regressámos à vila, larguei o meu companheiro e combinámos nova sessão no dia seguinte, de madrugada.

Estava a ficar muito tarde na noite. Tentei bloquear o chorrilho extenuante de pensamentos. Pus-me de barriga para baixo, posição de dormir. Tentei concentrar-me na minha filha lá tão longe, a dormir antes de mais um dia de escola. A saudade acalmou-me e finalmente adormeci ao som das folhas das árvores na conversa umas com as outras.

Acordei antes do despertador. Fiquei quietinho no quente da cama para não o incomodar. O vento tinha amainado um pouco, mas ainda era noite escura. Esperei paciente pela alvorada, empurrando com o pensamento o Sol para que ele viesse depressa do Oceano Índico e iluminasse aquela parte do planeta. Pensei na minha posição geográfica no globo, como tanto gosto de fazer: imaginar-me como um pontinho que sai disparado da cama através do tecto, e sobe rapidamente até ver a região, o país, o continente e a forma arredondada do planeta com o meu ponto de partida lá em baixo. Tudo isto enquanto fujo dos satélites que me tentam apanhar na sua vertiginosa viagem de pescadinhas de rabo na boca.
Os íbis que dormiam nas árvores do quintal anunciaram com o seu canto o início do dia, pressentindo o astro que se aproximava ainda invisível. Pouco depois, o despertador acordou e respondeu-lhes. Levantei-me e tomei um pequeno-almoço rápido, sem grande apetite. Continuava com a excitação febril do dia anterior. Peguei no carro e lancei-me em direcção a Wakkerstroom, distante cinco quilómetros da minha base. Ao fim de alguns minutos, quando me cruzei com a primeira viatura, corrigi a minha posição na estrada, apercebendo-me de que até ali tinha vindo em contramão. Fui buscar o David ao sítio combinado, uma esquina da vila. Mais tarde viria a perceber que ele tinha vergonha que eu fosse à casa dele, e andava dois quilómetros a pé para ir ter comigo à cidade dos brancos.
“Hello Francisco, how are you?”. Fez-me um sorriso largo e acolhedor, tanto quanto o ar gelado da manhã deixava.
“Sawbona David!” respondi, tentando impressioná-lo com a minha primeira palavra em zulu, acabadinha de aprender na véspera.
“Vamos por aquele caminho”, apontou enquanto entrava rapidamente no carro e colocava as mãos em cima do aquecedor do tablier, pedindo-me para o ligar. Pusemo-nos em marcha. Eu sentia o coração acelerado, olhos vivos de entusiasmo. Olhei em redor. As primeiras cores da manhã iluminavam o planalto, estava um vento muito frio, e ambos vestíamos cachecóis, luvas e gorros. Muitas espécies de aves desconhecidas (para mim) passavam por nós, atravessando a estrada de terra batida. Cinco minutos de silêncio passaram, um português e um zulu a tentarem imaginar o que dizer um ao outro, eu cheio de perguntas mas com medo das dificuldades de comunicação e de ferir a susceptibilidade do meu companheiro. David, voluntarioso como sempre, tomou a iniciativa.
“Francisco, soubeste do que aconteceu na América?” perguntou-me no seu inglês macarrónico.
“Não...” respondi apressado e distraído com a paisagem, aves e pensamentos.
“Parece que um avião chocou com um prédio.” continuou David.
Não pus de parte a possibilidade de estar a compreender mal o que ele me queria dizer.
“Era um avião pequeno? Grande? Morreram muitas pessoas? “, perguntei.
“Não sei...” Interrompeu repentinamente a frase com o olhar fixo no lado direito da estrada, enquanto poisava a mão no meu braço, para eu parar.
“Olha, está ali um grupo de abetardas!”.
De facto, lá estavam. Um grupo de quatro aves a cerca de 150 metros da estrada. Tinham uma fantástica tonalidade azul, que ligava muito bem com o amarelo da planície. Ao sentirem-se observadas não voaram, antes agacharam-se e tornaram-se o mais discretas possível, imitando as pedras em redor. Observei-as com os binóculos. Pareceram-me ser dois machos e duas fêmeas. O David concordou e deu-me mais detalhes sobre como distinguir os sexos. Tomei nota da observação no meu caderno de campo e carta militar, sorrindo de felicidade. Seguimos viagem.
Ao longo da manhã encontrámos outros dois grupos de abetardas, enquanto o David me explicava como funcionava a pradaria, as estações do ano, a queima anual das pastagens, os grandes proprietários brancos, os grupos de homens armados que vigiavam as quintas... Vimos várias outras aves da montanha, bem como suricatas, mangustos amarelos e daimões. Vimos também um belíssimo serpentário, ave com uma colecção de plumas vistosas na cabeça, ar arrogante e orgulhoso de quem arrancaria uma delas a qualquer momento para assinar um qualquer documento importante. Aprendi diversas palavras em zulu e fiz a devida troca em português. A meio da manhã a temperatura baixou ainda mais. O céu começou a ficar coberto de nuvens e o vento gelado não permitia que mantivéssemos as janelas abertas. Achei que estava um frio de morrer, pelo menos para um português, e o meu amigo zulu certamente pensava o mesmo.
“Um homem pode morrer aqui...” não parava de repetir com um ar cada vez mais assustado. De repente, flocos brancos começaram a cair na janela do carro.
“Está a nevar!” exclamei entusiasmado. David não partilhava do meu entusiasmo e estava visivelmente constrangido. Confessou-se preocupado com as suas quatro vacas, todo o seu mealheiro, magríssimas com a falta de pasto verde e agora a terem de suportar aquele dia gelado de início de Primavera. Três delas viriam a morrer, e nos dias seguintes vimos muitas carcassas de gado no planalto e gente pobre que as esquartejava às escondidas, arriscavam a própria cabeça por um lombo alheio, caso fossem surpreendidos pelos “comandos”, brigadas que vigiavam as grandes propriedades dos brancos e atiravam a matar a quem estava do lado errado da vedação.
A neve não dava sinais de parar de cair e o David sugeriu regressarmos à vila. Acedi prontamente, já que não me apetecia ficar preso no meio da montanha com um nevão, logo no meu primeiro dia de trabalho em África...
Deixei o David na rua principal e regressei à base com dificuldade, já que a neve começava a amontoar-se na estrada. Vi o André através do vidro da sala da casa dele. Parecia estar absorto a ver televisão. Decidi bater-lhe à porta e mostrar-lhe que estava bem e não tinha ficado bloqueado pela neve.
“Olá.”
Virou-se para mim com um ar incomodado e retorquiu um olá seco e distraído, para os olhos logo voltarem ao écran televisivo. Pareceu-me um bocadinho falta de cortesia nem sequer me ter perguntado se tinha corrido bem o dia, ou se a neve nos tinha causado problemas.
“A manhã correu razoavelmente bem, mas a neve estragou tudo agora...”, tentei continuar a conversa, “...mas ainda vimos três grupos de abetardas”.
“É melhor não saíres nos próximos dias” disse. “O nevão está a ser intenso. Podes ficar bloqueado e não há ninguém para te ir buscar.”
Voltei a ficar incomodado com aquela frieza. Mais tarde, viria a perceber que era um traço da personalidade daquele sul-africano e não uma antipatia particular por este português.
“Aconteceu alguma coisa especial na América?” perguntei, tentando sem sucesso espreitar a caixa que mostrava a verdade ao mundo.
“Alguém atirou um avião para cima de uns prédios” foi o que consegui perceber, já que a resposta foi dada entredentes, mais para dentro do que para fora...
“Ah, o David contou-me de manhã. Então... não foi um acidente?”
“Não. Foi um ataque terrorista.”
“Bom! Os americanos devem estar furiosos!...” exclamei.
“Se fosse no teu país tu não ficarias furioso?” retorquiu André com um olhar quase de desprezo.
“Sim, claro que sim!...E agora, o que vai acontecer? “ tive ainda a coragem de perguntar.
“Provavelmente a guerra.” disse secamente e virando-me em definitivo as costas.
“Obviamente não gosta de mim” pensei, e com um “Até logo” saí apressadamente, decidido a não me deixar incomodar mais. Desesperei por não ter televisão nem rádio no quarto.

Nos dois dias seguintes a neve não me deixou trabalhar. Olhava desesperado para o manto branco que me roubava horas preciosas. Passei o tempo a ler, estudar e escrever um artigo sobre as abetardas de Castro Verde. No segundo dia de manhã decidi ir até à aldeia, já que a estrada até lá já estava desbloqueada. A temperatura tinha subido notoriamente e estava calor. A paisagem previamente alba era já uma manta bicolor em tons de amarelo da erva seca e branco da neve. O céu azul lá em cima dizia olá à Primavera, mas a neve teimosa agarrava-se ao fim do Inverno. Fui até ao pub local. Não se via ninguém cá fora e a porta estava entreaberta. Bati duas ou três vezes. Um cão, preto e pequeno, começou a ladrar, espreitando para mim com a cabeça enfiada através da cancela do jardim. Um homem baixo e gordo veio até à porta e gritou “Spike, já devias saber que não se ladra a brancos!”. A África do Sul do apartheid, em toda a sua pujança, estava ali à minha frente. Este era de certeza um dos muitos afrikanders racistas que quando do fim do sistema, compraram centenas de latas de feijão para se entrincheirarem em casa à espera da guerra civil. Diz-se que até hoje continuam a comer essas latas de feijão... Senti uma figadal antipatia pelo personagem.
“Em que posso ajudá-lo?” perguntou.
“Arranja-me uma sandes de queijo e uma cola, por favor?”
Tentou meter conversa, notando que era estrangeiro. As perguntas do costume: donde vinha, se estava ali para ver as aves, quanto tempo ficava.
“Já passei por Portugal, uma vez em que fui a Espanha” disse com ar orgulhoso. “Têm muitos pretos lá?”
“Não, a maioria são brancos” respondi secamente. Não queria aturar aquilo. Pedi para embrulhar as coisas, paguei e saí apressadamente.
“Terríveis estes atentados na América, hei ?” ainda o ouvi dizer antes de me enfiar no carro.
Lancei-lhe um seco “Ngizokibona kusasa”, um “Até amanhã” no meu melhor zulu, em tom de confrontação, e saí daquela viagem ao passado. Nunca mais nos falámos durante o resto da minha estadia em Wakkerstroom. Enquanto voltava ao Centro, recordei os acontecimentos de há dois dias atrás. Como podia alguém lançar um avião contra um prédio? E com passageiros?! Revisitei a última frase do homem do pub. Ele tinha utilizado o plural. Teria sido mais do que um atentado?! Não, devia haver algo que me estava a escapar... Decidi tentar comprar um jornal, mas já não havia nenhum no quiosque da estação de serviço. Pedi para me guardarem um no dia seguinte. Já no Centro, combinei com o David, a iniciar a viagem de regresso a casa na sua bicicleta depois de mais um dia de trabalho, que senão caísse neve durante a noite voltaríamos ao campo na manhã seguinte.

Pela aurora, espreitei o céu limpo. Não tinha nevado. Voltei ao ponto de encontro com o David e seguimos para a montanha. Um rio de esplendorosa luz matinal espraiava-se pelo planalto. Suricatas e mangustos amarelos aqueciam-se à entrada das suas tocas, um olho fechado outro aberto, não fosse uma águia ou um serval apanhá-los desprevenidos. Ainda se via neve no topo das montanhas, mas no planalto ocorriam apenas manchas brancas no meio da vastidão amarelada, já com algumas nódoas de verde da erva nova. David estava satisfeito pelo fim dos dias frios, mas ficava muito constrangido sempre que nos cruzávamos com uma vaca ou ovelha mortas. Ao contrário de mim, ele tinha a perfeita noção do que representava a perda de uma cabeça de gado para um agricultor negro. Os zulus investem todas as suas economias no gado, é a sua instituição bancária, onde os juros são o leite, vitelos ou borregos. Nesta terra não se assaltam bancos, rouba-se gado. Grupos de homens e mulheres passavam por nós com um ar apressado, grandes sacos ensanguentados às costas, pedaços das rezes mortas, a tentarem não ser descobertos pelos “comandos” das grandes propriedades dos brancos. Gente que arriscava a vida por pepitas de carne fresca, mais valiosa que ouro.
À parte a confirmação da tragédia causada pelo frio e neve dos dias anteriores, o trabalho correu bem, com alguma conversa e várias observações de abetardas. No regresso o David pediu-me se me importava de o levar ao sítio onde estava a mulher dele, em casa da sogra, para lhe dar um recado. Foi a primeira vez que entrei na cidade de barracas satélite a Wakkerstroom, onde vivia a maior parte dos negros. Ruas estreitas e sujas, casas cor-de-terra, muitas crianças e velhos na rua, um ar geral de pobreza, mas não de fome. Muita gente regressava a casa, a pé ou de bicicleta, os que podiam de luvas e gorros para se protegerem do frio do fim da tarde. De todas as casas saía fumo pelas pequenas chaminés, o que tornava o cenário ainda mais cinzento. David guiou-me por um labirinto de ruas. Duas ruelas antes do destino, começou a mostrar sinais de ansiedade, olhando nervosamente para todas as esquinas.
“É ali ao fundo” apontou. “Podes parar aqui?”.
“Mas não queres que te leve até lá?”.
“Prefiro ir a pé...” hesitou sorrindo “se o pai da minha mulher me vir mata-me...”
Pareceu-me uma afirmação exagerada, mas aquela era uma cultura diferente. Resisti à tentação de pedir mais explicações. David lá seguiu a pé, encostado às paredes como que a jogar às escondidas. Chegou à casa e espreitou devagarinho por uma janela. Vi-o a chamar e falar com alguém. Uma breve troca de palavras e regressou depois a correr. Entrou no carro, agradeceu e sorriu novamente, vendo o meu ar intrigado.
“Quando me casei era suposto dar cinco vacas ao pai da minha mulher. Mas eu não as tinha e menti-lhe, disse que lhas daria logo a seguir ao casamento. Desde aí tenho de fugir sempre que o vejo”, esclareceu.
“Há quanto tempo estás casado?”
“ Cinco anos.”
“E vais fugir dele até ao fim da tua vida?” disse sorrindo.
“Sim. Estou casado com a filha dele, e não com ele...” concluiu com ar tranquilo.
Pareceu-me lógico. Fiquei sem resposta.
“Já ouviste que morreu muita gente lá na América, por causa dos aviões?” continuou David mudando rapidamente de assunto.
“Aviões?! Sempre foi mais que um avião? Mas o que é que, de facto, aconteceu?”
“Não sei bem, mas acho que foram três aviões. Morreram muitas pessoas.”
Decidi que não podia ficar mais tempo sem perceber o que se tinha passado. O quiosque onde o meu jornal esperaria por mim já estava fechado. Nessa noite telefonei para casa e fiquei esclarecido. Ataque terrorista, coisa impensável, todo o Mundo inquieto, países em alerta máximo. Imediatamente ocorreu-me a ideia de que podia ficar isolado naquele canto do planeta enquanto o mundo entrava em guerra. Sendo um pessimista praticante (pessimista talvez não, apenas gosto de ter a consciência do pior cenário possível), imaginei quanto tempo poderia demorar a atravessar o continente africano de carro, caso deixasse de haver transportes aéreos. Imaginei-me num mundo em guerra, a tentar regressar a minha casa e à minha filha num carro alugado roubado. Qual seria o melhor percurso? Pela costa, ao longo da Namíbia e Angola? Ou directamente para Norte, atravessando o Zimbabwe e depois... Raios ! Que país havia ao norte do Zimbabwe? Mais a Norte, a passagem pelas florestas equatoriais africanas... Qual seria a melhor região para o fazer? Não me imaginava a desviar-me muito para a região dos grandes lagos, que me adicionaria mais semanas à já longa viagem. Depois, as savanas do Sahel, o grande deserto do Saara (mas aí já animado pela proximidade do continente europeu) e finalmente a costa de Marrocos, onde tentaria passar o estreito nalgum barco de clandestinos, comprando a minha passagem a troco do destroço de viatura que nessa altura deveria ter. Se tudo corresse bem, talvez conseguisse estar em casa no Natal!
Passei a comprar o jornal todos os dias. Li sobre os possíveis ataques químicos na América, e sobre essa substância estranha chamada Antrax. Sentia-me apanhado no meio de um turbilhão, sem saber se conseguiria regressar a casa. Este sentimento não me afectava a capacidade de trabalho durante o dia mas chegada a noitinha, na hora do mimo e conforto do lar, quando a minha filha me chama para me ir deitar com ela, uma angústia apossava-se de mim. Eram esses os momentos que escolhia para telefonar para casa, para me sossegar. Pensei várias vezes em cancelar o projecto e regressar imediatamente, mas controlei-me, determinado a não desperdiçar aquela experiência única.
Alguns dias depois, o Antrax chegou também à África do Sul. Correios, estações de comboios, ministérios. Uma alucinação colectiva apossava-se daquele país, como do resto do mundo. Até Portugal não queria ficar de fora e não pude deixar de sorrir quando soube do encerramento de algumas estações de comboios. Não era possível que os terroristas considerassem Braga ou Guimarães alvos potenciais! Ou então, eu não estava na posse de todos os dados. Será que me os ocultavam, para eu não me preocupar?.. O Antrax passou a ser uma afirmação de existência nacional, e país sem essa substância não tinha direito a aparecer no mapa. Todos os dias havia um país novo a adicionar à lista, reconhecimento da sua importância no contexto mundial. Mas ali, no meio das montanhas, aquelas gentes à minha volta continuavam as suas vidas, muitas delas de sobrevivência diária, sem perturbação. Brancos, pretos ou “coloridos” (termo que sempre achei fascinante para designar as outras raças que vivem na África do Sul; “Olá, eu sou um azul. Qual é a tua raça ?”), não sentiam necessidade, e muitos não tinham tempo, de participarem nesta loucura global. Tudo se passava noutro planeta, bem longe daquelas montanhas e planaltos. Ali, Lisboa era tão longe como Joanesburgo, Durban, Sidney ou Nova Iorque.

O tempo passou. A Primavera avançava sobre o planalto. Eu trabalhava e aprendia mais coisas sobre as montanhas, as abetardas e os Zulus. Continuei a acompanhar o insólito do que se passava no mundo exterior. Quando estava no quarto a trabalhar, fazia uma pausa a meio da tarde para ir para o carro ouvir as notícias no rádio. A montanha já estava coberta de verde quando comecei a perceber que talvez conseguisse regressar a casa antes do início da catástrofe mundial. Os americanos prometiam invadir o Afeganistão, mas parecia não ser para já. As chuvas, grandes trovoadas e chuveiros de fim de tarde, caiam diariamente e formavam muitos charcos e lagos onde os grous se juntavam para efectuarem as suas danças nupciais do início da época de reprodução. A planície verdejante salpicou-se de azul, e chegou a hora de partir. No dia do regresso, cheguei com horas de antecedência ao aeroporto de Joanesburgo, receoso de que alguma coisa corresse mal. Homens mal encarados e armados até aos dentes patrulhavam as instalações, e só descansei quando me vi dentro do avião da TAP, espécie de embaixada minha em terra estranha. Respirei fundo quando iniciei o voo que me levou rumo a casa.

Cerca de duas semanas depois do meu regresso a Portugal, jantava em casa de uns amigos. Televisão ligada a um canto da sala, menosprezada em prol de um fondue de carne e de uma conversa entusiasmada na mesa, na qual contava as minhas histórias africanas. Os meus olhos passaram pelo écran longínquo enquanto o garfo transportava um suculento naco de carne para a minha boca. Fiquei boquiaberto, olhos fixos no horror que se exibia à minha frente. Fez-se um silêncio respeitador na mesa.
“Ainda não tinhas visto?” alguém perguntou.
Abanei a cabeça vagarosamente. Só em Dezembro vi as imagens do 11 de Setembro. Só nessa altura percebi a grandiosidade do acontecimento. Não o tinha imaginado assim. De facto, nesse momento percebi que não tinha chegado a imaginá-lo, pelo menos no sentido visual da coisa, não sabia o que era um grande avião a pulverizar-se num prédio de muitos andares. Enquanto habitava um mundo misterioso de guerreiros zulus, neve e aves diferentes, algo de tremendo e insólito tinha acontecido noutro canto do planeta. Mas este meu mundo temporário era tão diferente, tão novo e absorvente para mim, que me escondeu a realidade. Revisitei as conversas, os mal entendidos, as reacções das pessoas com quem tinha conversado. Sorri. E pensei que tinha sido, possivelmente, a última pessoa do planeta a ver a crua verdade.