terça-feira, agosto 14, 2007

O beijo francês

As sextas-feiras eram o pior dia nas urgências do Hospital. Por isso, o Dr. Macedo, chefe da secção de politraumatizados, não estranhou que o chamassem ao banco de urgências pela décima vez nessa noite. “Doutor!”, exclamou a enfermeira quando o viu entrar, “chamei-o porque já não sabíamos quem devíamos chamar… Já vários médicos viram os doentes e não sabem o que fazer…É que nunca vimos nada assim…”. O Dr. Macedo estranhou a expressão facial de Teresa, um misto de preocupação e esgar de riso. Seguiu-a pelo corredor, ela sempre à frente com um passo rápido, até à sala três. Assim que entrou, outra enfermeira, com a mesma expressão de Teresa, exclamou o nome dele com um sorriso nos lábios. “Dr. Macedo!” Ao lado dela, uma mulher de 40 anos limpava com um lenço as lágrimas que lhe corriam na face. “Doutor, por favor salve-os!...” suplicou com um ar aflito, apontando para a mesa das operações. Em cima dela jaziam 2 corpos. Eram adolescentes, ele todo vestido de negro, com botas da tropa e tatuagens no braço, ela com uma saia comprida e rodada, e uma blusa às flores. Estavam deitados lateralmente, virados um para o outro. As suas feições não eram visíveis, já que as suas bocas se encontravam unidas num profundo e interminável beijo. O Dr. Macedo arregalou os olhos de espanto. “Mas que brincadeira é esta?! O que é que estes dois estão aqui a fazer?!” gritou fulminando com o olhar a enfermeira Teresa. “Acha que este é um local apropriado para brincadeiras de mau gosto?! Isto é suposto ser uma partida?!”. A mulher desatou a chorar agarrando-se ao Dr. Macedo. “O Doutor não está a perceber” respondeu Teresa tentando disfarçar o riso. “Estes jovens entraram nas urgências há meia hora. Também na sala de triagem pensaram que seria uma brincadeira de jovens alcoolizados, mas efectivamente estes dois precisam de ajuda médica”. O Dr. Macedo voltou a olhar para os 2 jovens. Obviamente ouviam a conversa. Lágrimas escorriam nas suas faces, mas continuavam sem se mover e em quase silêncio, já que a rapariga soluçava baixinho. As suas bocas permaneciam coladas, imóveis, como num beijo de estátuas.
“Eu bem avisei o meu filho que aquela coisa na língua podia fazer-lhe mal à saúde” acrescentou a mulher, “mas sabe como são os jovens, não é Doutor?, teimosos e sem dar atenção ao que dizem os pais...”. “Coisa na língua?” O Dr. Macedo franziu o sobrolho enquanto tentava espreitar os bastidores daquele acto íntimo, entre os lábios dos dois jovens, “Teresa, Leonor, o que se passa aqui afinal? Anquiloglossia? Glossite? Cisto? Tumor?”.
“Não Doutor, parece-me algo um pouco mais prosaico…” disse Leonor tentando esconder o riso, “A jovem tem um aparelho nos dentes. O jovem tinha acabado de colocar um piercing na língua. È provável que tenha sido o primeiro beijo deles depois disso e… tiveram azar…” “Azar?!” berrava já o Doutor Macedo, ainda sem compreender. “Doutor, o piercing deste jovem está entalado, aliás profundamente entalado, no aparelho dos dentes da Maria, assim se chama a moça. Já tentámos tudo mas não os conseguimos separar…”